Este artigo reflete nossa visão sobre transformação digital no varejo. Recentemente estivemos no Vale do Silício pela segunda vez liderando grupo de executivos do varejo brasileiro em imersão sobre inovação e transformação digital no varejo. A experiência gerou diversas reflexões, incorporadas no texto que segue.
Clientes não se relacionam com canais, mas com marcas. Transitam entre canais à medida em que comparam opções disponíveis e decidem onde e como comprar. O varejo precisa avançar na agenda de transformação digital, com olhar nas mudanças de comportamento dos consumidores. É na análise de seus micromomentos e consequentes necessidades, desejos e demandas que o varejo evoluirá para modelos de negócio integrados, que conhecem e entendem clientes e dominam processos e gestão de produtos e informação.
Transformação digital é de fato transformação organizacional e cultural. Não se realiza a transformação digital pela incorporação de tecnologias, mas pela mudança da maneira como as pessoas entendem a relação da marca com o cliente, os processos da empresa e a forma de usar tecnologia e mundo digital.
Transformação digital pressupõe fundamentos e acontece pelo desenvolvimento de cultura digital. O êxito na mudança cultural deve ser uma diretriz estratégica, alinhada entre conselho e direção e proposta da cúpula para a estrutura (top down). É preciso repensar modelo de gestão, para que haja engajamento das pessoas. O processo precisa ser feito com olhar nos consumidores e em como gerar mais valor para eles. A empresa precisa visualizar o fluxo de produtos e clientes em seu negócio, preparar sua arquitetura de sistemas e infraestrutura e percorrer a curva de aprendizado no comércio eletrônico e comunicação digital.
A transformação digital não se caracteriza como um projeto, mas como uma jornada, que tem começo, mas não tem fim, pois inovações levam a empresa à necessidade de rever a aperfeiçoar permanentemente seus processos e evoluir o modelo de negócios. O progressivo amadurecimento e as boas práticas acumuladas permitem consolidar fatores críticos de sucesso, que seguem abaixo:
No mundo digital o cliente quer comprar das marcas em diversos pontos de contato mas não quer atrito na sua experiência de compra. Para oferecer aos clientes esta “boa” experiência de compra o varejo precisa “enxergar” seus estoques em tempo real e em diferentes filiais e canais, precisa também reconhecer e monitorar o mesmo cliente em diferentes pontos de contato. A chamada “omnicanalidade” demanda uma forte infraestrutura de tecnologia e dados. Os investimentos em armazenagem de dados, segurança da informação, comunicação de dados entre outras iniciativas não é pequeno e se mostra um outro elemento determinante no sucesso da transformação digital para as empresas de varejo.
O mundo está passando por uma revolução digital impulsionada por smartphones e sua presença cada vez maior no dia a dia das pessoas. Números do Ministério das Comunicações mostram que 55% dos brasileiros com mais de 10 anos de idade (ou 96,4 milhões de pessoas) têm acesso à internet, contra 65,9 milhões no início da década. Tão importante quanto o acesso é a intensidade e forma de uso: um estudo do Google aponta que cada pessoa busca informações em seus celulares cerca de 150 vezes por dia. Para muitos, o celular é a primeira tela, a principal forma de interação com o mundo. Se o celular é tão presente no dia a dia, não surpreende que as principais empresas do mundo sejam companhias de negócios digitais, como Apple, Google, Amazon, Uber entre outras.
O eixo central da inovação digital está na mobilidade. É em aparelhos móveis que consumidores passam mais tempo conectados, transitam entre canais, se relacionam, se informam e que processarão a maioria de suas compras digitais (o que já acontece nos EUA, Reino Unido e China). Aplicativos e sites móveis serão a base de comunicação, relacionamento e interação entre marcas e consumidores, dentro e fora das lojas. Outro aspecto fundamental da mobilidade é sua capacidade de tirar atrito de processos, empoderar equipes de lojas e melhorar produtividade. O maior exemplo é o da Apple Store, no qual a plataforma Isaac permite aos vendedores gerenciar filas, consultar estoques, separar produtos, escanear itens, processar vendas, trocas e reparos, recomendar produtos complementares, vender serviços, receber meios de pagamento ou vender em outro canal.
O mundo digital desafia as empresas a basearem seus processos decisórios em dados e análises. A mudança é cultural e demandará novas competências e habilidades. Na sede do Google, uma frase bastante citada e mencionada em reuniões diz que “os dados vencem a opinião” (data beats opinion). Por trás desta frase existe um conceito essencial para o sucesso da transformação digital: o uso de dados em todos os processos de tomada de decisão nas empresas de varejo. Decisões sobre preço, promoções, sortimento, compras, expansão, serão cada vez mais baseadas em dados. O uso de dados exige que os mesmos sejam transformados em informação que geram decisões que por sua vez geram resultados.
Há entretanto uma barreira nas empresas de varejo: a falta de uma cultura de dados. Muitas decisões são baseadas em intuição, em opiniões o que atrasa e dificulta a transformação digital. Vale lembrar que startups e as empresas “nativas digitais” não sofrem deste mal e crescem com decisões mais rápidas e precisas.
Projetos e iniciativas devem ser constantes, rápidos, usando prototipagem para ganhar velocidade. No mundo digital, velocidade é mais importante que perfeição. É preciso estimular o erro correto e a capacidade de testar conceitos com velocidade e baixo risco para a empresa.
É muito difícil aprender tudo sozinho no ambiente digital. A velocidade e pulverização da inovação força as empresas a se abrirem e compartilharem. Isto inclui aproximar-se de startups, que podem acelerar e simplificar a resolução de problemas que a burocracia das empresas estabelecidas torna mais complexos. No extremo, a colaboração leva a fusões, e aquisições, como as que o Walmart vem empreendendo nos EUA (Jet.com e Bonobos entre outras).
Internet das coisas (IoT), realidade virtual, realidade aumentada, inteligência artificial e machine learning desafiam o varejo a decifrar tecnologias e aplica-las para aumento de produtividade e geração de valor aos clientes. Nenhuma delas porém terá o impacto do “comércio conversacional” (conversational commerce), a união de dispositivos com reconhecimento de voz e inteligência artificial.
Plataformas como Alexa da Amazon, Siri da Apple, Cortana da Microsoft e Google Now do Google transformarão a maneira como as pessoas se relacionam e interagem com o mundo digital. O atrito será reduzido ao mínimo e a principal interface para acesso ao mundo digital será a voz. Máquinas inteligentes conseguirão interpretar demandas e irão aprender na interação com o usuário. A empresa que mais vem avançando em aplicações do comércio conversacional em varejo é a Amazon, que já embarcou seu sistema Alexa em aparelhos domésticos como o Echo e em aparelhos que reduzem atrito e elevam experiência em categorias como moda (Echo Look) e alimentos (Dash Wand).
No inicio do processo de transformação digital se imaginava que se lidaria com o fenômeno conhecido como “showrooming”, onde cada vez mais clientes usariam lojas físicas para pesquisas e conhecer produtos, mas fariam suas compras online pelo menor preço encontrado. Isso ocorre sem dúvida, mas em dimensão menor que a prevista. De outro lado cresce o fenômeno inverso, do chamado “webrooming”, onde os clientes pesquisam produtos online mas continuam indo até as lojas físicas para efetuar e concluir suas compras.
Os dados de fluxo no varejo americano (lojas físicas) vêm caindo bastante, mas as vendas do varejo físico não caem na mesmo proporção o que prova a tese de que os clientes estão indo aos shoppings e ao varejo físico para de fato comprar os produtos e a Internet tem sido cada vez mais usada como fonte de pesquisa, entendimento e apresentação de produtos e serviços.
Esta relação do varejo físico com o varejo online tem sido chamada de O2O (online para offline). Exemplos simples de clientes pesquisando endereços de lojas físicas, telefone, horário de funcionamento, são cada vez mais comuns nesta relação entre o físico e o virtual. O varejo físico tem usado mídias digitais e estratégias digitais para atrair público para suas lojas e o varejo online tem usado o varejo físico como solução de entrega de produtos, posto de trocas. Esta relação do físico com o digital deve crescer muito nos próximos anos e a aquisição da Wholefoods pela Amazon só reforça esta ideia.
O mundo da tecnologia vem sendo transformado pela computação em nuvem e pela dominância de modelos de negócio baseados em serviços. O mundo do varejo precisa ter abertura para questionar seus modelos de negócio. A Apple constituiu uma empresa de serviços (Apple Enterprise) que vende a 3os a tecnologia que encanta consumidores em suas lojas; o operador de shopping centers Westfield foi pioneiro em transformação digital e montou empresa de serviços digitais para explorar o conhecimento acumulado; empresas como Staples e Best Buy vêm mudando a forma como seus negócios geram receita e resultados. O Magazine Luiza se define como uma empresa digital com lojas e vislumbra um modelo de negócios de marketplace multicanal.
Um frequente erro cometido por grande parte das empresas é acreditar que conseguirão realizar a transformação digital a partir de iniciativas digitais e investimentos em tecnologia. Contratar uma agência de marketing digital, estar presente nas redes sociais ou desenvolver uma operação de e-commerce são passos importantes, mas eles fracassam caso não exista uma cultura digital sobre a qual essas iniciativas possam ser estruturadas e construídas. Peter Drucker disse certa vez que “a cultura come a estratégia no café da manhã”. Isso significa que, sem um trabalho forte e prévio de desenvolvimento de uma cultura digital, iniciativas digitais, ainda que boas, provavelmente irão fracassar.
E como se constrói uma cultura digital corporativa? Em “Competindo pelo Futuro”, C.K. Prahalad define o conceito de “competências da organização”. Para ele, trata-se de um conjunto de habilidades e tecnologias que permite a uma organização oferecer um benefício aos clientes. Uma competência organizacional gera valor percebido pelo cliente, provoca diferenciação em relação aos concorrentes e pode ser expandida. Dessa forma, tem um impacto importante sobre o potencial de crescimento e de diferenciação competitiva de uma empresa no mercado. A cultura digital deveria, assim, ser tratada como uma competência essencial para as organizações e precisa ser colocada dessa forma nos processos de contratação, nas iniciativas estratégicas e na avaliação dos executivos.
Para o desenvolvimento da cultura digital como competência organizacional, é preciso mergulhar no mundo digital. Por isso, a empresa precisa fazer com que seus colaboradores (especialmente os executivos) adotem hábitos digitais. Usar o Uber, ficar hospedado pelo Airbnb, acessar conteúdos via YouTube, manter contas em mídias sociais, todos são passos simples e pequenos, mas importantes para que as pessoas adotem uma cultura digital, mudem seus comportamentos, hábitos e, paulatinamente, viabilizem a transformação corporativa.
O grande desafio da cultura digital está no fato de que os gestores das empresas tradicionais são analógicos, e por isso não possuem modelo mental um digital. Em vez de “nativos digitais”, eles são “imigrantes digitais”, estão se adaptando a uma nova realidade. Por outro lado, os mais jovens, os “nativos digitais”, não têm experiência de gestão, liderança e estratégia, mas dominam as ferramentas necessárias para implementar a transformação cultural. Por isso, os gestores precisam aprender com os jovens e os jovens com os gestores.
Os ambientes de trabalho contribuem para mudança cultural. Espaços rotativos, ausência de salas, executivos integrados com seus times, escritórios com cara de campus universitário ou verdadeiras “garagens” são exemplos frequentes no Vale do Silício. O ambiente de trabalho dos espaços de coworking e das aceleradoras reforçam esta ideia e startups defendem que é em ambientes assim que as ideias, a inovação e disrupção acontecem.
A cultura digital é um elemento determinante para as empresas de varejo e de muitos outros segmentos, nesse processo de ruptura e inovação que já começamos a presenciar e que, certamente, só veremos acelerar nos próximos anos. A empresa que souber trabalhar a cultura digital como base de seu DNA e se mover rapidamente nesse processo tem maior chance de prosperar e passar pela transformação digital de forma vencedora.
A base de uma cultura digital provoca grandes discussões a respeito das novas estruturas organizacionais. No Vale do Silício fica evidente que mesmo as grandes empresas têm migrado para estruturas organizacionais mais leves, colaborativas, flexíveis e com menos hierarquia e burocracia. Pensar a transformação digital sem uma nova estrutura organizacional é querer construir um edifício novo em uma fundação antiga.
Talvez este seja um dos desafios mais complexos e nebulosos. Empresas com modelos mais modernos de gestão como Spotfy, Google e as grande maioria das startups não têm um modelo único. O fato é que as características mencionadas acima, colaboração, flexibilidade, leveza, velocidade e menos hierarquia estão presentes em todos os casos bem sucedidos de novas estruturas organizacionais.
Fica claro também que as mudanças nas empresas da chamada velha economia precisam ser feitas em etapas, mais no formato de “evolução” do que no formato de “revolução”. Isso para que a cultura e as pessoas possam absorver e entender o novo modelo. Salvo nos casos nos quais o setor esteja sobre ameaça de ruptura por novos modelos de negócios, nos quais as empresas precisarão de transformação radicais para sobreviverem.
Transformação digital é muito mais abrangente que venda online e multiplicação de canais. Ela envolve repensar a forma da marca se comunicar, relacionar e servir seus clientes, o desenho organizacional, a cultura da empresa e a evolução de seu modelo de negócios. Empresas como Apple, Sephora, Walmart, Nike, Panera Bread, Magazine Luiza, Boticário, Reserva e Bob’s compreenderam o desafio e alcance. O mundo do varejo continuará sendo desafiado por Amazon e outras empresas obcecadas por consumidores e de forte cultura digital. O varejo precisa romper a inércia.
Alberto Serrentino é consultor, conselheiro, autor e palestrante. Fundador da Varese Retail, boutique de estratégia de varejo e transformação digital. Consultor com mais de 30 anos de experiência em varejo e consumo.
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