João de Oliveira Bernardi tinha sido nomeado juiz de direito fazia apenas alguns
meses.
Nascido em Belo Horizonte, onde sempre vivera, afora algumas estadas mais ou
menos longas no Exterior, filho e neto de advogados, encontrou sua vocação de magistrado
ao perceber muito cedo nos bancos acadêmicos e no escritório de seu pai que não tinha
pendores para a advocacia.
Tinha ânsia de exercer a arte de julgar, servir dessa forma a
comunidade, com a pujança e esperança de sua juventude.
A vida de advogado não lhe
interessava: conhecer o lado perverso da história do cliente, curvar-se às suas exigências
para sobreviver.
Seu irmão, Zeca, com outro espírito, seguiria a carreira do pai. Não ele,
Juca, como era chamado em casa.
Como João ou Juca sempre comentava, o advogado
nasceu com a vocação de engolir sapos como se fosse um néctar, um manjar de deuses, o
que recebia a total desaprovação de seu pai.
Como todo juiz jovem, no alvor de seus vinte e poucos anos, o cargo de juiz
representava muito nesse início de carreira. Não gostava quando um seu velho professor
sempre dizia que se o advogado acreditava ser deus, o juiz tinha certeza... Não queria que
fosse visto assim.
Fora nomeado juiz para auxiliar na comarca de Governador Valadares, mas depois
de alguns dias teve que assumir uma vara criminal em Ipatinga. Cidade peculiar, com
charme especial, dividida em torno da Usiminas.
Quando fosse possível, iria ser um juiz de
causas cíveis ou de família, mas no início de carreira não poderia escolher.
Abriu as audiências na primeira segunda-feira de sua presença na cidade com um
escabroso caso de acidente de veículos.
Um caminhão chocara-se com um ônibus, tendo
como resultado a morte do motorista do coletivo e dezenas de feridos graves. O réu era o
motorista do caminhão, denunciado por homicídio culposo e lesões corporais nas várias
vítimas. A prova do inquérito era confusa.
Talvez propositalmente confusa, pois o caminhão
pertencia a importante empresa da região e haveria, certamente, inúmeras ações
indenizatórias contra ela, algumas já propostas.
Os passageiros não viram nada, como era
de se esperar. Os policiais que atenderam a ocorrência já encontraram ambos os veículos
fora da pista, sob um barranco. O Boletim de Ocorrência trazia na realidade a descrição do
motorista acusado, cujas declarações tinham sido tomadas ainda no hospital, as quais
narravam que o ônibus invadira a contramão de direção e o embate se dera de frente.
A
perícia técnica mais confundia do que esclarecia. João se lembrava do que ocorria no seu
escritório no período de estagiário: quantas vezes foi portador, contra a vontade, de uma
“mensagem” para os peritos, geralmente em um envelope fechado, mais ou menos
volumoso... E como isso lhe revirava o estômago e confrontava com tudo aquilo que
esperava de uma carreira jurídica.
E como era abjeto ter contato com esses funcionários,
não só peritos, numa engrenagem policial toda viciada! Por isso, como teria que sentenciar,
não daria a mínima atenção a essa perícia do Instituto de Criminalística. Tudo dependeria da
prova que colheria, das testemunhas arroladas pela acusação, pelo Ministério Público.
Conhecia o Promotor pela boa fama. Ele era tido como rigoroso na busca da
verdade. Por isso não era tido como muito simpático às autoridades locais. A denúncia trazia
rol de três testemunhas, duas ouvidas na fase de inquérito, que também pouco esclareciam.
E uma terceira, que não fora encontrada.
Pela manhã, João recebera uma ligação no hotel,
do Promotor:
“Doutor, desculpe importuná-lo, mas hoje às 13 horas temos uma instrução sobre um
acidente de veículos terrível e rumoroso na cidade. É provável que o senhor ainda não
tenha visto o processo”.
Mas João tinha pedido os processos do dia logo cedo no hotel e os estava lendo.
Cuidados de juiz novo.
“De fato eu estou com os autos aqui. Estava acabando de ler. Prova confusa não é”.
“Pois é João, mas eu estou trazendo a testemunha que não foi ouvida na polícia.
Aliás, pedi mesmo que sumisse. Trata-se de um funcionário da construtora que trabalha na
rodovia. Ele foi mandado para uma outra empresa em São Paulo. A empresa me ajudou.
Mandei um estagiário buscá-lo no alojamento, ele chegou ontem à noite”.
“Ah é. Que ótimo! Espero que tenha esclarecimentos”.
“Terá sim, é uma pessoa muito simples, simplória; tive contato com ele uma única
vez. Vamos ver o que conseguimos”.Oxalá tivéssemos sempre promotores com esse senso
profissional, pensou João Bernardi.
“Vamos chamá-lo em primeiro lugar então”, aduziu o magistrado.
Ao se abrir e instalar uma audiência, seja criminal ou cível, sempre paira no ar um
ambiente tenso e o juiz, por mais experiente que seja, nele se envolve. Na ação judicial
sempre há um conflito e para as partes a presença do juiz, dos advogados e dos
funcionários é algo que as deixa inconfortáveis. Não há como se sentir diferente.
O interrogatório do réu, o motorista do caminhão, tomado por outro magistrado, não
trouxera novidades. O acusado se limitara a repetir o que dissera no inquérito policial.
Estava em velocidade moderada e na pista havia alguns cones indicando reparos. O ônibus
saíra da sua mão de direção e o pegara de frente na contramão. Os réus em delitos de
trânsito sempre estão em velocidade moderada, nos limites permitidos...pensou João
Bernardi. Eles acham sempre, e os advogados também, que os juízes e promotores vivem
em outra galáxia ou são mesmo inocentes ou burros. O problema é que os acusados podem
mesmo estar em velocidade compatível. O difícil é superar o preconceito para não ser
injusto no caso concreto. Juca, apesar de jovem, já conhecia muito bem os meandros da
prova, algo que o escritório de seu pai lhe ensinara com maestria.
O advogado do réu, todo empertigado, dentro de impecável terno de tecido italiano
cinza, protuberante gravata vermelha sobre camisa azul celeste, logo quis fazer um
comentário: “Só temos duas testemunhas não é excelência?”
João Bernardi conhecia o advogado, pelos seus trânsitos no foro de Belo Horizonte.
Não era alguém simplesmente contratado pelo réu. Mas conhecido advogado da empresa
de transportes, pertencente a conceituado escritório da Capital. A empresa sabia que uma
eventual condenação de seu motorista na esfera criminal iria complicar seriamente sua
atuação nos processos de indenização, que já montavam a milhões de reais.
“Não doutor, temos três. O Ministério Público localizou e está trazendo a testemunha
que não foi ouvida na fase policial”.
O advogado não conseguiu disfarçar e sentiu o golpe como um boxeador
surpreendido com um direto no fígado, logo no primeiro round. Ficou imediatamente lívido.
Normalmente as audiências são públicas. Há algumas cadeiras ao fundo destinadas
a estagiários. Ali havia três moças com pranchetas de anotações, não se duvidava que eram
estudantes de Direito. Mas, estava presente também um senhor de cerca de cinqüenta anos
de idade, num terno azul brilhante. Geralmente, antes do começo da audiência, os
estagiários se identificam e pedem autorização para o juiz. As estudantes tinham feito isso
perante o escrevente de sala, que iria datilografar os depoimentos, segundo este lhe
informou. Mas João podia imaginar quem seria o outro assistente. Dirigiu-se a ele: “O
senhor quem é? Tem interesse neste caso?”?
“Excelência, trata-se do diretor da empresa proprietária do caminhão. Requeiro que
ele possa estar presente”, adiantou-se o advogado que recobrava um pouco de cor, mas
ainda estava pálido.
“Consulto o senhor promotor”.
“Nada a opor, excelência, desde que não saia do recinto para fazer conchavos lá fora
com as testemunhas”, disse prontamente o representante do Ministério Público”. Esse
promotor tem mesmo culhões, pensou imediatamente o juiz.
“Pro...protesto excelência...pela forma como o senhor promotor se manifesta”, tentou
mostrar serviço o advogado.
“Não tem nada que protestar. Isso é coisa do direito americano doutor. Não vou abrir
um incidente desnecessário no processo”. “Senhor oficial, apregoe a primeira testemunha”,
foi enfático o juiz João Bernardi (quando tem gente poderosa no pedaço, sempre há
incidentes à vista, pensou). Magistrado jovem promissor esse, sem dúvida. Uma das
melhores qualidades do juiz é não temer os poderosos.
“A testemunha está em meu gabinete, excelência. Peço que o Senhor oficial vá
buscá-la”, diz de seu assento o Promotor.
“Prooo.... Impugno excelência, o procedimento é irregular!!!!!”, quase berrou o
advogado. O suor começara a marcar sua camisa celeste...Ele parecia mais um halterofilista
agora...
“Qual a irregularidade doutor???”
“O promotor escondeu a testemunha e somente a apresenta agora, e ainda
conversou com ela em seu gabinete”...quase gritou o nobre causídico de defesa. “Tomou a
defesa de surpresa”.
O Promotor ia começar a falar, mas o juiz Bernardi se adiantou:
“Doutor, não há surpresa alguma. A testemunha está arrolada com destaque na
denúncia que foi recebida faz seis meses... Nada impede o Ministério Público de conversar
com as testemunhas no intuito de busca da verdade e para a formação do libelo acusatório,
doutor. O senhor nunca conversou com suas testemunhas de defesa???”
Mudez total do advogado.
Vou qualificar a testemunha. O senhor quer requerer algo, doutor?
“Não”. Foi um “não” quase grotesco.
Eis que finalmente chega a testemunha. Um típico interiorano mineiro. Mineirinho
mesmo. Franzino, de meia altura, curtido pelo sol, calça desbotada, camisa listrada, botina,
mas com um semblante simpático e vivaz, daqueles que convivem com a natureza.
O escrevente fez as perguntas de praxe, nome, qualificação, profissão. À esta
pergunta, o Dioclécio, este seu nome, respondeu com certo orgulho “operadô de paressiga”.
“Como???”, reperguntou o escrevente: “Operadô de paressiga, trabaio na rodovia”,
repetiu...Como se escreve, pergunta o escrevente? (pergunta inócua) “Vigi, nunca iscrivi
isso não”... O escrevente datilografou, com dois “ss”.
O juiz começou: “O senhor fica advertido que deve falar a verdade sob pena de ser
processado e preso”.
“Vigi dotô, nunca minti na vida...”
João Bernardi finge que não ouviu. Não há outra coisa a fazer, pois essa resposta se
repete com freqüência com a gente simples da terra.
“O senhor estava trabalhando na estrada quando houve esse acidente, em 24 de
setembro de 2002, entre um caminhão e um ônibus”?
“Estava sim senhô”.
“O senhor viu como aconteceu a batida” (a linguagem tinha que ser simples com
esse tipo de testemunha”).
“Vi não sinhô” (opa, o juiz não esperava essa resposta).
“Mas o senhor sabe alguma coisa sobre esse acidente?”
“Sei tudo sim sinhô”.
“Alguém lhe contou como os fatos ocorreram?”
“Contou não sinhô, mas sei que o caminhão bateu na contramão com o ônibus, o
motorista do caminhão é todo culpado”.
O advogado se levantou!!!!”Protesto excelência, esse depoimento é imprestável e
suspeito. A testemunha está prejulgando”.
“Calma doutor, quem vai julgar sou eu”. E dirigindo-se à testemunha:
“Eu advirto o senhor mais uma vez que tem o dever de falar a verdade sob pena...”
“Pela ordem excelência”, cortou o promotor, “seria conveniente perguntar à
testemunha qual a sua função na estrada naquela hora”.
“Pois é, se tivesse perguntado isso logo de saída não teria criado esse embaraço”,
pensou Juca.
“O que o senhor fazia na rodovia naquele momento?”.
“Estava operando o paressiga dotô!”
“O senhor pode esclarecer o que é isso?”.
“Posso sim. Trabalho nas construtora faiz tempo com esse serviço. Quando a
estrada está meio interrompida, com conserto, deixando passar carro só num sentido, eu
fico no início do conserto com uma placa bem grande, de um lado está escrito em vermeio
PARE, e do outro está escrito em verde SIGA”. “Tem outro colega do outro lado do conserto
com placa igual, a gente fala pelo rádio. Os carro estavam vindo, eu estava com a placa
indicando PARE, porque a pista só deixava passar mesmo um carro. O caminhão passou
por mim direto, correndo, tentei falar pelo rádio com o posto mas não deu, logo depois tem
uma curva, só ouvi uma bruta explosão!!!!! Pegou na contramão né dotô?”
Os olhos do promotor brilhavam, o advogado estava à beira de um enfarte, o réu, na
cadeira da ponta com cara já de condenado, o diretor da empresa simplesmente saiu da
sala sem qualquer pedido de autorização e o dr. Bernardi, simplesmente atônito. (Operador
de paressiga!!!! Que coisa!). Ah, e as estagiárias, como sempre, sem perceber o que estava
ocorrendo, anotando tudo.
“O dr. Promotor tem alguma pergunta?”
“Uma única, excelência: havia já outros veículos parados ali esperando a testemunha
virar a placa?”
A testemunha se adiantou: “Havia sim, acho que um fusca e uma moto, não havia
muito movimento naquela hora, mas o caminhão nem chum...Passou direto. Logo depois
tem uma curva e de onde eu estava não enxergava. O estrondo foi ali”.
“A defesa tem alguma pergunta?”
“Nenene...nehuma”.
“O senhor Promotor vai ouvir as demais testemunhas?”
“Desisto, excelência!”.!
por Sílvio de Salvo Venosa