Anos 80. Década da minha adolescência. Nessa época a cultura de massa estava em seu auge. Eu e os meus amigos tínhamos acesso, em TV fechada, a no máximo cinco ou seis canais e, quase todos nós, assistíamos aos mesmos programas, recebendo exatamente os mesmos insights sobre “as coisas do mundo” e em horários definidos pelos nossos pais. Ouvíamos o mesmo estilo musical, nas pouquíssimas rádios sintonizadas em nosso 3 em 1, nas fitas K7 e nos incríveis discos de vinil. Assistíamos aos mesmos filmes de sucesso de bilheteria os quais, muitas vezes, já nos chegavam com um certo atraso. O único lugar onde se podia observar uma leve diferença na diversidade de acesso à informação era na biblioteca pública da cidade. Ali conseguíamos driblar as tendências das outras mídias e focar, um pouquinho, em nossas preferências individuais. Nos deliciávamos com outros textos, outras imagens, outros cheiros.
Ano 2014. Dou início ao meu 21º ano como professor. Física para o Ensino Médio e Cálculo Diferencial e Integral para os calouros de engenharia. E qual é o perfil desses meus alunos? Nunca conheceram um mundo sem a banda larga. Nasceram e foram criados em um mundo com internet. Possuem em seus quartos um notebook, TV a cabo com mais de uma centena de canais, smartphones de última geração, Netflix, Spotify, Kindle e Smartwatch. Ou seja, acesso ilimitado e sem restrições a todo tipo de conteúdo e nos mais diversos formatos. E ainda, tudo isso hiperconectado por meio das redes sociais onde, com pouquíssimos cliques, é possível curtir, comentar e compartilhar. Num piscar de olhos forma-se uma rede própria de conteúdos onde já não se pode prever quando e onde termina a influência desse share. E eu ali, diante desses alunos, com um conjunto de slides em power point no pen drive e uma caixa de giz coloridos, ousando ensinar Física e Matemática, tentando inspirar pessoas, com ingredientes e estratégias que já não funcionavam tão bem, que não despertavam tanta atenção e interesse do meu público, que não eram mais aderentes e convergentes para os meus alunos que estavam cada vez mais inquietos, críticos e mobile. Por mais que eu tivesse uma poderosa narrativa e uma incrível segurança sobre o meu conteúdo, sobre aquilo que eu deveria entregar ao longo das minhas aulas, eu percebia claramente a cada momento com os meus alunos que essa prática, apenas essa ferramenta, já não se sustentava sozinha. Foi então que percebi, diante de uma intensa dor docente, que eu estava obsoleto, mofado, um verdadeiro professor dinossauro em sala de aula.
E essa minha percepção, essa espécie de sensação de ter ficado para trás, de ter perdido algo que aconteceu no mundo e que ninguém me falou, me fez refletir intensamente sobre a minha prática docente. Mesmo diante de um novo paradigma no âmbito educacional, para mim estava claro o que eu fazia profissionalmente: sou professor, dou aulas. E, também, era nítido o caminho que eu usava para que isso acontecesse da melhor forma possível: preparo minhas notas de aula, meus slides, escolho exercícios para resolver como exemplos e organizo uma sequência de ideias para me fazer entender ao longo de cada aula. Porém, quando eu me perguntava: por que é que eu faço o que faço? A resposta não vinha de forma imediata. Ou seja, eu estava titubeando quanto ao meu propósito como professor em pleno século XXI.
E todo esse incômodo me levou a uma reflexão ainda mais profunda sobre tentar entender o que eu, e muitos professores que eu conheço, fazíamos ano após ano, semestre após semestre, bimestre após bimestre. Temos uma Ciência extraordinária e infinita a ser ensinada, cada professor dentro da sua área de conhecimento e na disciplina em que possuem domínio técnico (no meu caso eram a Física e a Matemática). Porém, diante de um cardápio extraordinário a ser explorado dessa Ciência, me entregaram um primeiro recorte: o plano de ensino. Um documento que limita o que devo ensinar e que, quase sempre, não tive participação na elaboração. É algo do tipo “cumpra o que está aqui”! Levo, então, esse plano de ensino para casa, para o meu escritório, e começo o preparo das aulas com base nesse conjunto de itens que devo ensinar. E, inevitavelmente, faço o segundo recorte: a aula está pronta. É isso que vou fazer e falar em sala de aula. E, ao chegar diante dos meus alunos, para fazer a aula acontecer, realizo o terceiro recorte: a aula não está exatamente igual ao que preparei. São incontáveis as vezes em que a aula tomou outro rumo. E não porque consegui ir além daquilo que planejei, mas sim, porque tive que recordar pré-requisitos para que os meus alunos de hoje entendessem conteúdos que já deveriam ter sido consolidados ontem. E ainda, em cada aula, faço o quarto recorte do meu próprio conteúdo quando me proponho a chamar a atenção dos alunos para aquilo que eu realmente acho importante que eles saibam, até peço para que eles façam um “asterisco” ou grifem com uma caneta “marca texto” essa espécie de dica superimportante! Na continuação disso tudo, após aproximadamente um mês de aula, chegamos ao momento do quinto recorte: dos inúmeros tópicos que chamei a atenção ao longo das aulas, escolho apenas alguns para cobrar na prova. E, após a correção dessa avaliação, no momento da entrega das notas, eu e vários alunos ficamos felizes, muitos comemoram e vibram por terem conseguido ficar na média! Porém, quando recorro ao dicionário descubro que algo de qualidade média, que não é bom nem mau, que é banal e sem criatividade, é algo medíocre.
É impossível não ficar angustiado ao perceber que após tanto esforço, tanta energia gasta, tantas idas e vindas entre uma escola e outra, de uma aula para outra, termos um movimento e uma inércia educacional em prol da mediocridade. Uma correria desenfreada em busca de notas azuis no boletim escolar as quais, muitas vezes, não refletem efetivamente que algo relevante foi aprendido. O que foi avaliado em termos de competências socioemocionais? O que foi desenvolvido em termos de habilidades e atitudes para o presente e para o futuro da humanidade? O que foi levado em conta no que se refere às inteligências múltiplas quando usei uma mesma avaliação para avaliar indivíduos diferentes? O que será que restará como “caldo de conhecimento e cultura” quando, ao final do ano letivo, eu espremer o que foi ensinado e aprendido diante da grade curricular, da grade horária, e de outras incontáveis grades existentes no âmbito educacional, que acabam encarcerando os alunos sob a jurisdição da correta marcação do A, B, C, D e E no gabarito, do (V) Verdadeiro ou (F) falso, e do Ctrl+C e do Ctrl+V daquilo que o aluno precisa escrever em concordância com a expectativa da banca avaliadora?
Certamente é por causa de tudo o que foi descrito acima que o Brasil agoniza nos resultados em rankings educacionais. Frequentemente ocupamos posições no último quadrante dos países avaliados pelo PISA (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes). O Fórum Econômico Mundial de 2018 trouxe o Brasil em 119º lugar no ranking de qualidade da educação. A revista Isto É Dinheiro estampa, no dia 04 de janeiro de 2019, um artigo com um relato de que o Brasil possui um sério problema de evasão escolar: 41,5% dos jovens de até 19 anos não concluem o Ensino Médio. E o MEC nos informa que, de cada 100 alunos que concluem o Ensino Médio, apenas 13 ingressam no ensino superior e somente metade deles “recebem o canudo”. Diante disso tudo cabe aqui uma pergunta inconveniente: como vamos desenvolver um país com esse fracasso educacional? Para onde escorrem os quase 6% do PIB investidos em educação em nosso país? Onde está o investimento em infraestrutura e formação dos professores? O que fazem efetivamente os burocratas da educação que há tempos estão fora da sala de aula e insistem em ditar regras e inventar siglas sobre como devemos fazer a educação em nosso Brasil? Há tempos esse mindset fixo não se mostra eficaz.
Tenho andado muito pelo nosso país realizando palestras e workshops sobre a Educação 4.0, Tecnologias Educacionais Emergentes, Metodologias Ativas de Ensino, Cultura Maker, uso de Realidade Virtual, Impressão 3D, Drones, Inteligência Artificial e Big Data na educação, e outros temas ligados à educação de vanguarda. E o que tenho visto? Uma quantidade enorme de professores dispostos a inovarem suas práticas educacionais. Gestores educacionais espremendo orçamentos para realizarem um mínimo de diferença na vida dos seus alunos. Comunidades escolares realizando projetos extraordinários na esperança e na fé de formarem pessoas para um mundo exponencial, para empreenderem em suas Startups e impactarem o mundo ao seu redor.
Em minhas andanças tenho me esforçado, insistentemente e humildemente, a plantar poderosas sementes de um novo olhar sobre o processo de ensino e aprendizagem para o nosso país. E nada disso feito ao acaso. Tudo realizado com muita seriedade, com fundamentação teórica e, principalmente, com inspiração nas experiências de professores, instituições e países que tem feito coisas incríveis acontecerem em suas sociedades. E nessa semeadura, eu e todos os professores parceiros nessa nobre missão da educação, estamos arando a terra, fertilizando o solo, plantando os grãos, irrigando a terra, cultivando os brotos, colhendo os frutos, e se esforçando para que sejam alimentos para o desenvolvimento do nosso país. E o que recebemos dos nossos governantes? Terreno judiado, falta de reconhecimento, pouca valorização, no dia 15 de outubro uma maçã na mesa, uma propaganda sem propósito na TV com a música “Ao Mestre com Carinho” pela trigésima vez como trilha sonora de algo sem emoção, algo feito só para não deixar passar a data em branco, sem o Carinho que o Mestre efetivamente merece.
Porém, mesmo assim, ano após ano, buscamos em nossos propósitos e com esforço hercúleo, influenciar pessoas e construírem um país melhor, um mundo melhor para todos nós!