Assim como o uso da máscara, lavar as mãos é a medida mais importante para se evitar o contágio não só contra a covid-19, mas de diversos outros vírus e bactérias. Nesse sentido, a tese defendida pelo cientista francês Louis Pasteur no século 19 foi confirmada. Pasteur afirmava que inúmeras doenças virais poderiam ser evitadas pelo simples hábito de lavar as mãos. Entretanto, no Brasil de 2020, possuímos um saneamento básico do século passado e muitas pessoas não possuem nem mesmo o direito de lavar as mãos. Os números falam por si só: 100 milhões de brasileiros não têm acesso a esgoto, ou seja, 50% de toda a população brasileira. Enquanto, 35 milhões de brasileiros não possuem água potável.
O saneamento básico no Brasil é uma, entre tantas outras, infraestruturas carentes, precárias e atrasadas, e essa não é uma realidade recente. No modelo regulatório passado e ultrapassado, o poder público tomou as rédeas na realização dos investimentos necessários para a universalização do serviço, e empresas estatais passaram a ser as grandes operadoras das redes de distribuição de água e esgoto. O objetivo principal era simples, universalizar não só o acesso a água e esgoto, mas a dignidade de toda a população brasileira.
O resultado desse modelo são os números dramáticos e vergonhosos do nosso saneamento básico. Os Estados perderam sua capacidade fiscal, logo não possuem mais a força financeira para serem as locomotivas dos vultuosos investimentos necessários para a universalização do serviço. As empresas estatais operadoras, na maioria dos casos, se tornaram estruturas inchadas, ineficientes, corporativistas e cabide de empregos políticos, perdendo a capacidade de prestação do serviço.
No final de junho, por meio de uma sessão virtual histórica, o Senado Federal aprovou o Novo Marco Legal do Saneamento com um objetivo ambicioso, universalizar o serviço até 2033. Segundo estimativas, o custo para a universalização seria algo em torno de R$ 500 bilhões a R$ 700 bilhões. Apesar de alguns discursos ideológicos contra a prestação do serviço por empresas privadas, o fato é que não existe outra solução para tirarmos o Brasil dessa lama. A concessão do serviço para a iniciativa privada é o único caminho. Num setor onde somente 6% das cidades brasileiras têm o serviço de saneamento prestado por empresas privadas, atrair outros agentes é um desafio a ser enfrentado. Por esse motivo, a aprovação da nova legislação é um marco a ser comemorado, sendo um 1º passo para segurança jurídica e regulatória necessária na atração desses investimentos.
Porém, assim como a lei da gravidade não pode ser revogada por uma norma jurídica, o novo marco legal sozinho não tem o poder de convencer o investidor privado e atrair os investimentos. Muitos obstáculos precisam ser vencidos e endereçados nas regulamentações infralegais e locais. O Brasil é um país de dimensões continentais, 26 Estados, um Distrito Federal e 5.570 municípios. Coordenar todos esses agentes não é uma tarefa fácil. Assim como acontece em qualquer indústria de rede, por exemplo o gás natural, a escala é muito importante para diminuição do custo e melhor prestação do serviço para o consumidor. Logo, determinar áreas de concessão nos limites municipais, dentro das unidades regionais em que os territórios estaduais serão divididos, assim como nas regiões metropolitanas, é de extrema relevância. Fortalecer a ANA (Agência Nacional de Águas) para instruir normas de referência nacional, em especial sobre a qualidade e eficiência da prestação do serviço, regulação das tarifas, coordenar e harmonizar a atuação das agências reguladoras municipais e estaduais é outro desafio gigantesco.
Outro ponto importante é com relação às atuais empresas estatais prestadoras do serviço. A nova legislação concede tratamento especial para essas empresas, permitindo a renovação dos contratos vigentes ou o reconhecimento das situações de fato, em que há prestação dos serviços sem formalização. Em ambas as situações, é estabelecido prazo máximo de 30 anos para esses “novos” contratos. Esse novo prazo ficará condicionado à comprovação de capacidade de investimento dessas empresas para garantir a universalização dos serviços dentro do novo prazo estabelecido em lei. A realidade de hoje nos mostra que retirar das empresas estatais as concessões é uma tarefa difícil. Além de toda a complexidade jurídica com relação ao cálculo de ativos regulatórios e indenizações, existem as questões políticas. Em ambos os cenários, as soluções podem se arrastar por anos em disputas judiciais.
Apesar de ser uma questão superada em vários países, conviver com a falta de saneamento não é uma exclusividade ou um desafio somente no Brasil. Sensibilizado com o problema em diversas outras cidades e países, o bilionário americano Bill Gates identificou outro problema muito importante para a falta de saneamento em cidades como Dakar. Num projeto pioneiro, a Fundação Gates entendeu que universalizar o serviço exige um desafio físico, a infraestrutura. E, como compatibilizar o aumento da infraestrutura em localidades onde o nível de renda é muito baixo? Como construir a infraestrutura necessária em áreas muito adensadas como as comunidades brasileiras? Como remunerar investimentos por meio das tarifas em comunidades de baixa renda? A solução foi o desenvolvimento de privadas autossustentáveis, ou seja, que não precisariam estar conectadas a um cano de esgoto. Além disso, o desenvolvimento de estações de tratamento de material orgânico que não precisam estar conectadas à rede de distribuição. Sem dúvida, trata-se de um desafio tecnológico enorme que ainda está sendo testado e desenvolvido. As inovações tecnológicas poderão ser a grande solução para levar saneamento às comunidades de baixa renda.
A aprovação do Novo Marco do Saneamento é um norte muito importante para conseguirmos sair da inércia e ter um serviço universalizado. É inconcebível um país como o Brasil ter os números que tem no atendimento a um serviço tão essencial quanto a distribuição de água e esgoto. Num mundo cada vez mais preocupado com saúde e o meio ambiente é absurdo pensar que milhões de doenças são causadas, filas de hospitais aumentadas e sistemas ecológicos destruídos por existirem valas a céu aberto e despejo de esgoto in natura no mar, rios, lagoas e baías. Enquanto o mundo pensa na 3ª revolução industrial e nas revoluções tecnológicas, nós precisamos enfrentar esse problema que o hemisfério Norte resolveu no século passado depois da peste bubônica.
Adriano Pires é Dr. em Economia Industrial pela Universidade Paris XIII, Mestre em Planejamento Energético pela COPPE/UFRJ e Economista formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
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