No meu último aniversário, o Fábio Barbosa, presidente do Conselho da Endeavor, me atentou para algo que ficou comigo desde então. Falou que os americanos que estão certos em dizer happy birthday, ou seja, feliz aniversário. Afinal, ele simboliza mais um ano de vida. O famoso "parabéns" que nós brasileiros, estamos acostumados, deveria ser direcionado apenas a quem fez algo de relevante com o último ano que passou.
Agora em fevereiro completei um ano como diretora geral da Endeavor - além dos quase sete anos que já acumulava. E com ele um belo presente pelo meu aniversário à frente da organização: havia saído a lista da Forbes das “20 mulheres mais poderosas do Brasil", e eu estava nela, junto com várias mulheres que admiro.
Fiquei super grata pelo reconhecimento e lisonjeada pelas mensagens que recebi, mas em algum lugar dentro de mim, ainda parecia cedo para receber os parabéns. Sinto que o nosso legado mais importante ainda está por vir.
Por outro lado, reconheço o privilégio e a responsabilidade em ser um exemplo para outras mulheres.
É preciso honrar a conquista de cada mulher porque outras tantas brigaram para que houvesse espaço para que uma conquista fosse possível.
Há exatos 162 anos, no dia 08 de março de 1857, 129 operárias morreram queimadas em uma ação policial em uma fábrica têxtil, em Nova Iorque, porque reivindicaram a redução da jornada de trabalho de 14 para 10 horas diárias, e o direito à licença maternidade.
Sim, ainda precisamos de um dia para relembrar da importância da busca por igualdade de direitos, e uma palavra que valide o movimento - no dicionário Houaiss da língua portuguesa o termo feminismo significa "a teoria que sustenta a igualdade política, social e econômica de ambos os sexos". Estamos falando de centenas de anos de desigualdade, e um passado muito recente de direitos conquistados:
O homem moderno tem mais de 100 mil anos. A revolução industrial tem mais de 230 anos. Mas as mulheres brasileiras só tiverem acesso à educação superior 140 anos atrás, e as que optavam por esse caminho em 1879 ainda sofriam duras críticas da sociedade;
Mulheres só puderam votar no Brasil em 1932, 87 anos atrás, e ainda com a permissão do marido. A igualdade de salários entre homens e mulheres que desempenhem a mesma função só se tornou lei em 1943, apenas 76 anos atrás;
O passo mais importante do movimento feminista no Brasil aconteceu apenas 31 anos atrás, com a Constituição Federal de 1988, que passou a garantir igualdade formal de direitos entre mulheres e homens perante a lei.
É claro que, da lei para a realidade, ainda existe um longo caminho pela igualdade.
O relatório sobre disparidade de gênero elaborado pelo Fórum Econômico Mundial mostra que o Brasil está na 132ª colocação de 149 países no que diz respeito a participação das mulheres na força de trabalho e igualdade salarial por trabalho semelhante.
É um dado chocante, sim, mas que tem raízes históricas.
Nossas avós, mães - e muitas de nós - foram criadas em um mundo em que, por lei, tinham menos direitos que os homens.
Com menos direitos, também tinham menos oportunidades e estímulos, e muitas vezes menos autonomia por suas próprias escolhas. Não havia espaço para questionar a realidade e para lutar para ter uma voz porque a lei estava contra elas.
Num cenário como esse, o espírito empreendedor é sufocado. E isso acaba refletindo diretamente no número de mulheres à frente de startups e scale-ups no Brasil, e no mundo:
De acordo com o pitch book nos Estados Unidos, startups fundadas exclusivamente por mulheres captaram apenas 2.2% de um total de U$ 130 bilhões de investimentos em venture capital em 2018 - 12% para startups com pelo menos uma mulher no time de fundadores; Em um estudo realizado pelo Boston Consulting Group (BCG), analisando 350 empresas aceleradas em programas do MassChallenge, as startups fundadas por mulheres receberam muito menos investimento que as criadas por homens (empresas com fundadoras do sexo feminino receberam, em média, US$ 935 mil em aportes de capital de risco, contra US$ 2,1 milhões das companhias fundadas por homens).
Menos de 10% dos tomadores de decisão em escritórios de VC nos EUA são mulheres, e 74% do total de empresas de venture capital nos EUA tem zero investidoras mulheres. No Brasil, das mais de 100 empresas listadas no Novo Mercado, 70% não tem nenhuma mulher no board. E nos Conselhos que possuem alguma presença feminina, as mulheres ocupam menos de 8% dos assentos. Na Endeavor, nós sempre tivemos um time muito feminino - 58% de mulheres. Entre as lideranças, temos 5 mulheres e apenas 1 homem! Apesar disso, menos de 10% das empresas apoiadas têm mulheres em seu time de fundadores.
No relatório sobre o programa de diversidade do Vetor Brasil, uma frase me marcou profundamente: "Quando a desigualdade já está posta, a neutralidade discrimina."
Com esse cenário de sociedade, ecossistema e organização, sabemos que não podemos ser neutros - precisamos nos movimentar.
Estamos aqui para ver mudanças estruturais no país, que garantam que tenhamos um ecossistema que estimula o crescimento e o impacto dos empreendedores - os grandes responsáveis por carregar as transformações que o Brasil precisa.
Queremos cada vez mais exemplos - de empreendedores e empreendedoras - capazes de construir grandes empresas, e que abraçam a responsabilidade de construir um grande país.
Grandes mudanças não são imediatas, mas são urgentes. E começam de algum lugar. Para nós, ela começa endereçando a pauta de igualdade de gênero, nem que seja com pequenas ações:
1. Dando luz aos exemplos de empreendedoras de impacto que apoiamos.
Queremos dar voz e visibilidade a mulheres, que inspiram. Não só pela coragem de enfrentar os desafios uma trajetória à frente de empresas de alto crescimento, mas também pela trajetória de impacto, como exemplos para tantas outras mulheres. A Endeavor lançou, ao redor do mundo, a campanha #HerImpact, contando a história de empreendedoras, mentoras e investidoras da nossa rede que transformam o ecossistema em que estão, em mais de 30 países.
Esse movimento já acontece com as empreendedoras que apoiamos hoje. A Leila e a Zica empregam milhares de mulheres com o Beleza Natural, e abriram a primeira loja nos Estados Unidos no ano passado; a mãe e filha Lisabeth e Ilana Braun, da Dermage, têm mais de 90% de mulheres em sua equipe; a Juliana Freitas transforma o acesso a crédito no Nordeste com a FortBrasil; a Noeli gera milhares de empregos em Chopinzinho, no interior do Paraná, com a Doce D'ocê; a Renata Rebocho conecta mais de 300 mil alunos ao Ensino Superior com a Quero Educação; e a Fabiana Salles é pioneira no uso de inteligência de dados na área de saúde privada do país, com a Gesto Saúde.
2. Fechando a lacuna de gênero em nossa rede global.
Temos uma meta global de que 30% da rede Endeavor ao redor do mundo seja composta por mulheres até 2030. Por meio de eventos direcionados e recrutamento ativo, estamos nos esforçando para conseguir mais mulheres mentoras e investidoras, e claro mais empreendedoras.
No Brasil, estamos estruturando novos mecanismos de busca e seleção de empreendedoras à frente de scale-ups, como foco em aumentar o número de empresas apoiadas com mulheres fundadoras.
Esse é o ponto inicial da nossa máquina de exemplos: encontrando mais representações femininas, podemos contar essas histórias, inspirar novas gerações e ajudar tantas outras mulheres a crescerem pela força do exemplo e das conexões.
3. Investindo em mulheres de alto impacto.
Nosso fundo global, o Endeavor Catalyst, se comprometeu a ingressar no The Billion Dollar Fund for Women ao alocar US$ 5 milhões para empresas lideradas por mulheres nos próximos dois anos. Por meio dessa parceria, estamos formalizando e dobrando nossos esforços para aumentar o apoio a empresas lideradas por mulheres.
A expectativa é de que as regras e a estrutura de co-investimento da Endeavor Catalyst transformarão esse compromisso em cerca de US$ 50 milhões investidos em negócios liderados por mulheres.
4. Incentivando as empresas que apoiamos a considerarem a igualdade de gênero como premissa para os cargos de Liderança.
Aqui na Endeavor, falamos muito do efeito multiplicador dos empreendedores, reforçando o poder que um exemplo tem para transformar um ecossistema empreendedor inteiro.
Depois de quase 20 anos no Brasil, apoiando algumas das principais referências do país, vimos que a semente de empreender com alto impacto fica muito mais forte se você trabalha perto de um grande exemplo. Vimos, na Endeavor mesmo, várias histórias de pessoas que saíram para empreender e construíram grandes legados - o Paulo Veras foi diretor geral da Endeavor entre 2004 e 2009 e, alguns anos depois, tornou a 99 o primeiro unicórnio brasileiro; a Marília Rocca, primeira diretora geral da Endeavor, alguns anos depois, liderou a Mãe Terra.
Por esse motivo, a partir deste ano vamos começar a medir a % de mulheres em cargos de liderança de todas as empresas apoiadas. A nossa aposta é que, se pudermos garantir um número maior de mulheres trabalhando lado a lado com os grandes exemplos da nossa rede hoje, elas serão os grandes exemplos de amanhã.
Ao olharmos para o futuro da Endeavor, sabemos que esses compromissos serão essenciais para continuar a liderar o movimento do empreendedorismo de alto impacto ao redor do mundo.
Falamos muito aqui da força do exemplo.
Especialmente hoje, em uma data tão simbólica, sinto um privilégio enorme em ser reconhecida como um exemplo de liderança desta organização que admiro tanto.
Mas o maior sentimento é o de enorme responsabilidade.
Ficarei ainda mais honrada quando for reconhecida como a liderança que conseguiu, por ações concretas, garantir avanços reais para que tenhamos mais mulheres como exemplos de empreendedoras de alto impacto no Brasil.
Aí, sim, vocês poderão me dar os parabéns.