“Quero enriquecer a medicina com um conceito novo: Arbeitscur – a cura pelo trabalho”
Esta frase, extraída de um dos romances mais famosos da história da literatura, Anna Kariênina, de Liev Tolstói, é dita por um de seus personagens principais, Konstantin Lievin, que junto com Iekaterina Cherbatskaia (kitty) forma o par amoroso feliz que se contrapõe ao casal trágico da história: Vronsky e Anna Kariênina.
Dentro do espaço que temos aqui, não cabe resumir a trama deste romance extraordinário de Tolstói, destacando o papel de suas personagens principais e dos temas por ele abordados. Para o objetivo deste breve artigo cabe apenas esclarecer que Lievin é um homem jovem, rico, bem educado e proprietário de uma grande fazenda no interior da Rússia. Ao contrário da maioria de seus contemporâneos, Lievin é um desses representantes da elite que padece de uma grande crise de consciência: questiona se é justo viver do trabalho alheio; se não há outra forma de se viver as relações sociais de trabalho se não da exploração dos mais pobres.
No contexto em que a referida frase aparece no romance, Lievin, refugiado em sua fazenda, recebe a visita de seu meio irmão, Serguei Ivánovitch, um intelectual que vive em Moscou e que gosta de discutir, de forma absolutamente teorética, as questões referentes às relações de trabalho, ao papel dos camponeses (mujiques, como eram chamados), seu pensamento, sua cultura, etc. O “teoricismo” do irmão vai deixando Lievin absolutamente irritado, pois não se conforma com o fato de que alguém que nunca tenha efetivamente trabalhado na terra e mal tenha conversado antes com um mujique possa se arvorar em mestre a respeito desses temas.
Depois de passar boa parte da noite discutindo com o irmão sem chegar a lugar nenhum, Lievin levanta-se antes do sol nascer e dirige-se para os campos, onde os mujiques estão a iniciar o trabalho da colheita do trigo. Levado um tanto pelo despeito e outro tanto pela necessidade de extravasar a raiva contida, Lievin decide tomar uma foice ou gadanha e se juntar aos camponeses no trabalho da sega.
Num primeiro momento o patrão desperta o espanto e a desconfiança dos mujiques. Porém, mostrando verdadeiro desejo de aprender e cooperar, Lievin vai ganhando a simpatia dos parceiros de trabalho, que o aceitam e o ajudam. Começando de forma meio desajeitada, logo vai adquirindo destreza e habilidade para o trabalho e, algumas horas depois, começa a perceber uma transformação que lhe proporcionava um imenso prazer. “Em meio à sua faina, ocorriam minutos em que ele esquecia o que estava fazendo, tudo se tornava fácil nesses minutos... Porém, tão logo se lembrava do que fazia e se esforçava para fazer melhor, voltava a sentir todo o peso do trabalho e a fileira ficava mal cortada.” Mais adiante, Tolstói nos conta que em pleno calor do meio dia “a ceifa não lhe parecia tão árdua. O suor, que o encharcava, refrescava-o e o sol, que queimava as costas, a cabeça e o braço (...) transmitia vigor e tenacidade ao trabalho; e ocorriam, de modo cada vez mais frequente, os minutos de inconsciência, em que podia não pensar no que fazia. A gadanha cortava sozinha. Eram minutos felizes.” (255)
Eram felizes também os minutos em que seus companheiros de trabalho lhe chamavam para uma pausa, para afiar as gadanhas e enquanto isso contemplar o trabalho já feito; assim como eram felizes também as pausas para tomar kvás, ou sentar à sombra de uma árvore e comer a comida trazida pelas velhas camponesas. Minutos após minutos que no fim constituíram horas, um dia inteiro feliz.
Quando Lievin chega de volta a casa, já com o sol posto, encontra o irmão lendo jornais, refastelado na mesa da biblioteca, com as janelas fechadas, “por causa dos mosquitos”. Lievin, por sua vez, não consegue esconder sua alegria, sua satisfação, seu intenso prazer pelos minutos de felicidade que viveu enquanto trabalhava sem pensar no que fazia. Havia esquecido a discussão do dia anterior; sua irritação, seus dramas, suas crises todas – havia esquecido de si mesmo! E é então nesse contexto em que ele afirma ao irmão que queria “enriquecer a medicina com um conceito novo: Arbeitscur – a cura pelo trabalho”.
Arbeitscur – um conceito expresso em alemão realmente muito interessante e enriquecedor, principalmente nestes tempos em que vemos e somos tantos os que adoecemos justamente por causa do trabalho! Chega a ser surpreendente imaginarmos como aquilo que para nós hoje é muitas vezes fonte de doença e desumanização possa se apresentar paradoxalmente como fonte de cura e humanização! Entretanto, os antigos já sabiam que muitas vezes o que nos mata é também o que nos cura – tudo é uma questão de dosagem e, poderíamos dizer também, de intensidade e de sentido.
O trabalho, tal como vivido por Lievin naquelas circunstâncias, lhe proporcionou minutos de felicidade, que se sucederam ao longo dos momentos árduos da ceifa e que se perpetuaram também ao longo dos intervalos de descanso, nas pausas, na contemplação do já realizado e do que ainda faltava realizar; nos momentos de leve descontração e convívio com os colegas de faina, na partilha da refeição simples e saborosa, no refrigério da chuva ou nas tragadas no rude kvás de ervas... E tudo isso experimentado, principalmente, nos momentos em que “se trabalhava sem pensar no que fazia”.
Eis aqui, parece, o ingrediente essencial, o princípio ativo fundamental que transforma o trabalho – tantas vezes veículo de desgaste e de enfermidades –, em fonte de cura e transformação: trabalhar sem pensar no que se faz. Trata-se, pois de se ocupar plenamente no trabalho, concentrando todas as nossas forças, sem se preocupar com mais nada senão com o que se está fazendo em cada preciso e precioso instante: concentração sem esforço. Trabalhar no ritmo do coração, com plena dedicação e concentração; sem se poupar, mas sem se extenuar. Tendo hora para começar e hora para terminar. Estando todo lá.
Aqui está a conciliação entre o trabalho produtivo e libertador, realizado no espírito da comunidade, no tênue e sábio equilíbrio entre a intensidade e a pausa, entre o esforço e o descanso, entre a solidão e o convívio.
Em tempos tão marcados pelo desiquilíbrio, desconcentração, deslocamento e ausência, reencontrar essa experiência de um trabalho em que “nos esquecendo nos encontramos”, pode proporcionar uma sequência de minutos felizes. É não apenas uma forma de encontrarmos a cura através do trabalho, mas também e principalmente, a nossa própria humanização.